7 de janeiro de 2010

O Quente


Pyotr havia-se feito à estrada havia uma semana.
Pernoitara em Prypiat, cidade vazia e fantasmagórica, onde nem os pássaros cantavam nem os insectos zuniam. Tudo parecia estar morto, havia apenas neve e prédios. Toda a cidade parecia estar a ser deglutida pelo planeta, como se deixasse de ser precisa pelos habitantes da superfície. Havia porém provas do que aconteceu, da fuga apressada dos habitantes, do pânico de algo que se desconhecia, da pressa em arrumar as coisas para partir e nunca mais voltar. E assim foi.



Pyotr era movido por algo que ele próprio não sabia definir. Sabia apenas que era inexorável, que algo o impelia cada vez mais próximo da Central. O seu passo era lento, mas decidido: sabia que estava mais próximo pelo leve zumbido dos seus tímpanos e por uma suave opressão do peito e da cabeça. Tudo à sua volta parecia estar morto.

Aproximou-se, por fim, do edifício principal. Se Pyotr se estivesse a ver por cima, repararia num círculo perfeito a toda a volta da Central, de quase meio quilómetro de raio: dentro desse círculo não havia neve, como se lá já não crescesse. Mas Pyotr não se estava a ver por cima, nem isso o impediria. Sabia que tinha de entrar, por um lado sentia medo, o medo do desconhecido, mas por outro sabia que não tinha alternativa. Mesmo fora do edifício, sentia já um quase calor, quase confortável depois de passar a noite com vinte graus negativos.


Entrou. Lá dentro era quente. O zunido que o acompanhava inexorável desde a manhã aumentou agora para um ligeiro rumor, um ruído de fundo, cuja origem era impossível de descortinar, no meio do silêncio brutalmente opressivo. Começou a reparar no desagradável sabor metálico na boca: sinal de que as radiações começavam gradualmente a corroer o seu corpo. Sentia uma ligeira dor de cabeça.

Olhou em volta, o caos era evidente... quase que imaginava, umas décadas antes, o terror pânico, a fuga atabalhoada, os vómitos, as dores lancinantes. Todos fugiram para nunca mais voltar, como se o sítio, mais do que se estivesse abandonado, fosse a residência do Demónio na Terra. Mas Pyotr avançou, porque era para isso que tinha vindo. Bastava-lhe seguir o calor. Vinha do andar de baixo, e Pyotr lançou-se com calma mas decisão para as escadas.

Ao descer, o ambiente parecia de outro planeta. A sua boca começou a ficar seca e a pele levemente encarquilhada. Havia cascatas de lava cinzenta e ressequida, as paredes de betão espesso tinham buracos violentos, havia estilhaços de grafite espalhados por todo o lado.


O calor, agora, era abundante. Mas Pyotr sabia agora qual era a sua origem: um quarto, ao fundo, com grandes portas de madeira esburacada. Lá dentro, a fonte dos seus delírios, a razão da sua custosa demanda, a origem dos seus motivos.
Ineshka.
Ineshka estava deitada a dormir numa cama larga com dossel. O quarto estava desarrumado, como se abandonado havia séculos. O calor era agora pesado e mofento. Ineshka estava nua, Pyotr sabia-o, porque acabara de se virar e mostrar as costas desnudas. Ineshka murmurava docemente, como se estivesse perturbada com algo. E o calor que emanava dos seus lençóis, e do seu corpo, era tal que causava ondas e distorciam o ambiente. O cheiro que dela emanava era de um animal quente, um mamífero hibernante, de saliva e doce suor.

E só isso fez valer a Pyotr o sacrifício da sua longa viagem.


Um abraço ao meu amigo Bispo por me ensinar a sua definição de "o quente".

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