26 de abril de 2009

Que sonho estranho tive ontem.


Ia uma nave muito alto no céu, uma nave enorme, dourada e brilhante, tão brilhante que era impossível olhar directamente para ela. A nave ia carregada de bebés, bebés aos montes, nem dava para lhe ver o chão. A certa altura, o porão da nave abriu-se, e os bebés precipitaram-se cá para fora, para o vazio. Vinham munidos de paraquedas. Bebés aos montes iam saindo da nave aos trambolhões, de maneira que, visto de longe, o céu parecia nublado.
Os bebés vinham caindo desamparados, para um planeta aparentemente desabitado. A um tempo, os paraquedas abriram-se. A vida futura de cada um desses bebés desarrolava-se à frente dos seus olhos. Tudo o que esses bebés seriam, tudo o que lhes acontecesse, agradável ou não, eles o saberiam de antemão. Olhavam para baixo com ansiedade. Uns gostavam do que viam, outros nem por isso, outros tremiam com horror.
Então, algo estranho aconteceu: os bebés que ficavam agradados com o que viam, as suas vidas pautadas com nada menos que sucessos retumbantes; amor e alegria eterna; plenitude e certeza dos sentimentos; dias solarengos e despreocupados; saúde e beneplacidade; tão apressados ficavam de desfrutar dessa vida, que se desembaraçavam com júbilo dos seus paraquedas, e se precipitavam em queda livre pelo céu aberto, e se esborrachavam alegremente no chão, ficando partidos em mil bocados. Pelo contrário, aqueles bebés cujas vidas lhes pareceriam menos como um doce caminho ensolarado, mas mais como um caminho pedregoso ladeado por espinhos; vidas que lhes trariam dissabores a toda a hora, momentos de reflexão e suspiros, lucidez e sobriedade para se aperceber de todas as misérias do mundo concentradas num só ponto; doenças, maleitas e incómodos; racionalidade e consciência do vazio; dias de chuva e vento; ambições goradas e um intermitente desalento; esses bebés queriam a todo o custo impedir a queda. Puxavam os fios do paraquedas, atrasavam a sua descida, até puxavam as suas perninhas para cima com nojo do que os esperava em baixo. Acabavam por cair mais devagar, mas caíam na mesma, muito suavemente aterravam no planeta em baixo. Acabavam por ser eles a povoar esse planeta deserto.

15 de abril de 2009

A Arte da Borra, parte I

“Algumas merdas devem ser levadas a sério.”
Coprófanes, séc. II A.C.

Vou iniciar agora um breve série sobre o fenómeno da defecação. Porquê, uma vez que toda a gente caga, não sendo uma actividade exclusiva minha? Por duas razões:

1 - Porque posso.
2 - Porque me apetece.

Vou então iniciar com a descrição da cagada utópica, depois a cagada distópica, depois uma dissertação sobre a física envolvida.


A cagada perfeita:

Há duas versões, consoante o local da descarga, e ambas podem produzir um belo efeito. Trata-se da cagada no local de trabalho e da cagada em casa. Vou debruçar-me na primeira, mais incomum, uma vez que há muitas pessoas a quem cagar no local de trabalho causa alguma repugnância, e outras há que se recusam terminantemente a cagar fora de casa, ao ponto da quase obstipação.
Cagar no local de trabalho é, para mim, uma maravilha, às vezes uma obrigação, quase sempre uma tradição. E se for bem feito pode tornar-se na melhor altura do dia.

A cagada perfeita (versão laboral), consiste, então, no seguinte.
Na véspera houve um bom jantar. Algo como uma francesinha, qualquer coisa pesada. A francesinha costuma proporcionar uma excelente cagada, com uma ponta mesmo de nostalgia. Depois, um cinema ou um qualquer programa calmo. É nessa altura que as tripas dão sinal: “Olá! Já se cagava!”. Mas não. Vai-se para casa e, coisa estranha que acontece por vezes, esquece-se de cagar. Nada de grave, nada de pressas, a vontade não é muita. No dia seguinte, depois de comer os cereais, vem de novo a tal vontade premente. Mas agora sim, há alguma pressa, e não dá para cagar antes de sair de casa para o trabalho. De novo, nada de grave, ninguém está à rasca. A cagada perfeita, seja ela onde for, nunca, ou quase nunca, deve ser feita à rasca. Vou cagar quando quero, quero ser eu a escolher o sítio, existe a vontade mas sabendo que ainda é possível aguentar uma tarde inteira se for preciso. Lembrai-vos (lei primeira): sois vós que mandai no cu e não o cu que mandai em vós.
Para quem quer, um cafezinho e/ou um cigarrinho, para alguns é preliminar, para outros é catalisador.
Assim sendo, sem estar à rasca, mas sabendo de antemão que se vai cagar a meio da manhã, começa-se a fazer a prospecção do local. Para quem trabalha num sítio grande, há várias casas de banho e vários andares. Pessoalmente gosto dos WCs da chefia: o aroma do proibido, a metáfora óbvia; e normalmente são mais pequenas e sossegadas.
Idealmente então, quando estou a chegar, está a circunspecta empregada de limpeza sul-americana a sair. O aroma asséptico dos líquidos de limpeza para mim é altamente edificante. Entro no cubículo, e, milagre, a empregada esqueceu-se de meter “A Bola” no lixo. E está sozinha no chão a olhar para mim, a edição de hoje. Talvez o chefe tenha dado ordens nesse sentido. Tudo limpo, cinco rolos de papel higiénico, de boa marca e textura, empilhados no autoclismo.

E começamos então. Como sempre, arranco umas poucas folhas de papel higiénico e atiro para o fundo da sanita, para prevenir o Efeito Schpluck: quando o cagalhão é grande e denso (ou por outras palavras, “bom”), ao cair directamente na água, projecta-a directamente para cima. E molha o cu e/ou os tomates. Há várias escolas, nomeadamente a Japonesa, para quem esse fenómeno é sinal de sorte. Para outros, como eu, é sinal de olho do cu molhado e eu não gosto. Mais tarde aprofundarei esse assunto.
Ora, caminha de papel no fundo, calças arriadas, vamos ao que interessa. Depois de passar a noite com uma francesinha decomposta no cólon, notar-se-á alguma resistência em largar o cagalhão. Logo aí dá para ver que tipo de merda estaremos à espera: idealmente, sente-se nas entranhas um leve movimento, de resistência, de algo largo que está para vir, mas mesmo sem a manobra de Valsalva o seu trajecto pelo cego é inexorável: vem aí um cagalhão, deixai-o vir, não faz mal a ninguém. Mas é grande.
Uma ligeira aceleração ao atingir a ampola rectal. NUNCA, nesta altura, se deve fechar o olho do cu, por pior que seja a emergência. Pior que isso, só mesmo apertar o esfíncter a meio da viagem do tarolo, truncando-o a meio e cagando as bordas do cu.
Uma pequena adenda para discutir o cagalhão ideal, que será o mesmo seja qual for a circunstância: Este será espesso, fusiforme, grosso, de textura minimamente maleável, superfície ligeiramente oleosa mas com alguns grumos. A zona distal é ligeiramente dura (devido à maior absorção de água nessa zona do cagalhão), o que dá jeito para abrir caminho, como um breve “olá!”, mas também para coçar o olho do cu.



Discutivelmente, o cagalhão número 3. A tender para o 2, naquelas tardes ociosas de Domingo com uma Nova Gente à mão.

Estamos então na casa de banho do chefe, tudo está calmo, ninguém lá vai. Assim, o peido é não só perdoável, como mesmo recomendável e agradável (mais tarde abordarei esse assunto). Peido antes e peido depois, não durante. Ideal é aquele peido gasto e velho depois de sair o cagalhão (que só sai um, mas com mais de meio quilo). Quase nem cheiro tem, extingue-se devagarinho, o olho do cu fecha com calma. O cagalhão despede-se com toda a glória, e banda sonora a acompanhar.

A boa cagada distingue-se das demais pela sua conclusão sem ambiguidades. Sabe-se quando começa e quando acaba sem hesitações. O fim da cagada é óbvio, sente-se um vazio agradável na barriga, não se fica na sanita a pensar “será que já foi tudo”. Na cagada perfeita, o que se cagou até parece demais. Olha-se para o presente no fundo e indagamo-nos como é possível aquilo ter vindo de dentro de nós. Nessa cagada perfeita, o fim do cagalhão é assimptótico, em forma de gota de água ou fio de prumo, e idealmente o olho do cu fica tão limpo que a passagem do papel higiénico não passa de uma formalidade.

As sequelas: Também as consequências do cagalhão perfeito são alvo de controvérsia: há quem goste, em concomitância com o cagalhão produzido, de puxar o autoclismo e ouvir-se algum estardalhaço. O nível da água subir, o cagalhão rodopiar e ser seguidamente sugado com estrépito para o sifão, a água desaparece num som gutural como se as próprias entranhas da Terra estivessem a engolir o tarolo.
A outros agrada entalar o cagalhão na curva, como um semi-trailer numa rua apertada, onde só a varinha mágica poderia resolver a situação. Para alguns, a glória existe quando parecer que um Dachshund bebé morreu a tentar fugir pela sanita. Consoante o local, cada cu sua sentença. E uma vez que nos encontramos na casa de banho do chefe, deixar um poio de meio palmo no fundo da retrete, como um periscópio traquinas, não é um panorama mau de todo. Puxando o autoclismo umas três vezes (com um sorriso orgulhoso nos lábios), para não pesar na consciência.

E finalmente retiramo-nos. Ninguém nos viu. Tão depressa não voltaremos ao local do crime, e prevemos que a empregada sul americana deitará as mãos à cabeça e olhará para o chefe com outros olhos.

Voltamos à secretária. Suspiramos, temos uma agradável sensação de vazio. E, se a cagada foi mesmo perfeita, ficaremos logo com fome, e preparados para perpetuar o glorioso ciclo do cocó.

1 de abril de 2009

A Verdade sobre Carros e Motas

Não me acredito que o facto de o “carro” e a “mota” terem géneros, masculino e feminino respectivamente, seja fortuito.
“O” carro e “a” mota. O carro é masculino e a mota feminina. E eu sei porquê.

Primeiro, analisemos as formas. Uma mota é, indiscutivelmente, mais feminina que o carro neste capítulo. É mais pequena, mais maneirinha, tem uma voz mais clara, normalmente tem mais adornos estéticos que o carro, quadrado e cinzentão. Uma mota vista de cima tem uma silhueta nitidamente de fêmea, com a linha de cintura entre o depósito bojudo e a parte de trás do assento. É exactamente nesse ponto onde o homem monta. O carro é grande, tem voz mais grossa, pode dar-se ao luxo de andar sujo e maltratado, que não é por isso que não é usado.

Agora, performances. O binómio carro-mota corrobora ao limite as teorias neurológicas acerca das diferenças entre os sexos: as motas têm menor cilindrada, mas maior potência por litro; e fazem mais rotações por minuto que os carros. Daí que tenham de ser usadas a uma rotação superior. Normalmente andam bem mais que os carros. Estes são mais seguros, têm geralmente mais binário, mais força a baixas rotações, mais aptos a fazer trabalhos pesados; enfim, a trabalhar. Não são tão susceptíveis a mudanças climatéricas; a chuva, a altitude, o calor extremo, o piso escorregadio. É um pau para toda a obra, ao contrário da mota, cujo funcionamento óptimo acontece numa faixa muito estreita de condições: tempo claro, piso seco e liso, temperatura amena.

No plano ergonómico: Normalmente, uma pessoa compra um carro para trabalhar, base de gama, pouco gastador e fiável, mas se comprar mota esta será alvo de um muito maior escrutínio. Ficará na garagem quando chove, enquanto que o carro fica lá fora; recebe muito mais atenção e mimo, leva os melhores óleos, é perscrutada à procura de riscos, fissuras e folgas. Nunca o carro será alvo de um cuidado como este. O carro serve para ir para o trabalho, a mota serve para passear nos dias solarengos. Maiores momentos de adrenalina são passados a bordo de uma mota do que dum carro. São bem mais difíceis de guiar, e bem mais perigosas, sendo que muita gente jovem já pereceu aos seus comandos. O seu funcionamento é mais caprichoso, existe todo um conjunto de regras antes de se dar à chave. Os carros podem pegar de empurrão (e alguns só pegam assim).

Regra geral, para comprar um carro de prestações semelhantes a uma mota, gasta-se dez vezes mais dinheiro. Existem Porsches, Ferrari e outros. Mas para ver um Ferrari na rua, é preciso gramar com 300 Puntos e 800 Clios. As motas são todas bonitas, até as Famel.

Finalmente, os quads. Ou moto quatros, ou lá o que é. A meio caminho entre as motas e os carros. Feitos para pessoas que têm medo de andar de mota, mas gostam de usar cabedal e capacete nas deslocações. E é este o infalível corolário: o análogo humano dos quads é, tout-court, equivalente aos que os conduzem:

Os quads são paneleiros.


"Sim, tenho um quad. Como é que sabes?"


Echpanhola

Vive no meu quarto um palhaço, muito quieto
Só se mexe quando não vê ninguém por perto.
Não dorme, não come, não fala, não anda.
Fica apenas parado, juntinho da varanda.


Trabalha no mesmo edifício que eu uma espanhola fanhosa que reúne duas características muito peculiares: é espanhola, e é fanhosa. Ao mais alto grau. Não vou descrevê-la ao pormenor por medo do libelo; vou apenas adiantar que é bastante forte, e não tem uma linha de cabelo certa: tem sim um degradé hirsuto desde o cabelo, muito preto, até à frente da cara, composto por aquele tipo de pêlo que não é bem cabelo mas também não é barba.

Conheci-a quando ela me explicou como funcionava o seu espectrofotómetro (tende em conta que se trata de uma espanhola fanhosa). O meu fascínio por ela, desde então, não parava de aumentar. Ao ponto de, quando nos encontrávamos cá fora e ela estava a falar com alguém, tentava aproximar-me, não para ouvir a conversa, mas sim para a ouvir falar. Inconscientemente, as minhas glândulas salivares apertavam-se, como quando se dá aquela primeira dentada numa maçã verde. Ouço-a dizer “si” com deleite (gostava que houvesse uma consoante para o som que ela emite, o mais próximo seria “chchchciiiii”, mas com perdigotos): Ouve-se um ciciar, ou um borbulhar, parece que tem um bule de chá a ferver dentro da boca, ou que tem a boca cheia de peta-zetas. É um prazer culpado, bem sei, como aquele de estalar bolinhas do plástico de embrulho, um pau de giz a riscar um quadro ou o esfarelar de esferovite. Costuma também, e para o meu agrado, andar com dois pares de óculos: uns escuros e uns “de ver”. Os que usa à frente dos olhos depende se está fora ou dentro do edifício. Os que não usa estão colocados em cima da cabeça.

Por alguma razão, nunca mais consegui ter hipótese de a ouvir. Quando eu apareço ela cala-se, mesmo quando está a falar com outras pessoas.
Não sei se tem alguma coisa a ver, mas ainda não fiz nenhum amigo espanhol.

Acreditam:

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