14 de novembro de 2011

Fotografias de casamento.

...” Detinha-se frequentemente a olhar para as montras, quando saía à rua sozinho, num estado de fascínio permanente. Uma vez esteve parado durante mais de meia hora em frente a uma loja de fotografias pela qual já passara inúmeras vezes. Só que, daquela vez, era especial: as lojas de fotografia tinham por tradição fotos expostas que lá foram tirando durante os anos; debaixo do título “Fazemos fotografias tipo passe” estavam colados inúmeros papéis com caras de pessoas anónimas, que visto de longe parecia um mosaico confuso. Mas vistas de perto, a dois palmos do vidro da montra, eram caras de pessoas, pessoas que ele nunca tinha visto na vida, apenas talvez uma ou outra ele reconhecera da rua, dalguma loja, da vizinhança. Um pouco mais à direita estava algo bem mais interessante: Um dístico dizia “Fazemos Casamentos”, ou qualquer coisa do género. Fotografias e mais fotografias de casamentos, cerimónias, noivos e noivas estavam em todo o lado. Estavam expostas dentro de várias molduras que a loja anunciava que fazia, de modo que inúmeros casamentos de desconhecidos estavam emoldurados por um fofo coração vermelho, estofado de veludo, ou por uma grossa armação de madeira com uns cupidos sentados no topo. Aquela exposição intrigava-o: Fazia-o sentir que a emoção e a privacidade de cada um dos casais era ali espoliada e retalhada e vendida a vulso. Não por culpa do lojista: o que se passava era que, por exemplo, aquele rapaz de cara humilde que havia sido fotografado junto de um jardim de uma capela da aldeia rodeada por casas em construção, junto da sua noiva baixa e gordita, toda arranjada para aquela ocasião solene; esse rapaz sentia-se provavelmente – esperava ele – que aquele momento era só dele, que a sua noiva era a mais bonita do mundo, reviria aquele momento como o mais importante da sua vida, esperaria com deleite a noite de núpcias para tirar os três da sua noiva. Pois bem, tudo o que ele sentia era partilhado com mais trinta casais que só aquela loja tinha fotografado naquele mês.

Contemplava com especial curiosidade uma moldura que estava quase ao meio da montra, um pouco desviada para a esquerda. Jurava que já tinha visto aquela cara nalgum lado. Chegou quase imediatamente à conclusão de que nunca conhecera a rapariga, apenas que aquela fotografia já lá estava havia tanto tempo, que ele já a vira sem atenção, que ele pensava que a conhecia.

Tratava-se de uma moldura rectangular, de madeira escura, dividida em duas partes. Jazia na montra no meio de todas as outras, no meio daquelas irritantes bolinhas de esferovite e alguns rolos gastos. Eram duas fotografias, e estavam dispostas a parecer do género “antes” e “depois”, embora nada lá estivesse escrito. Na fotografia da esquerda aparecia a dita rapariga. Era uma rapariga bonita, de cabelos compridos e claros, de aspecto um pouco estúpido ou infantil. Só do busto para cima estava fotografada. Apercebia-se que seria provinciana, estatura média, cheia de tronco e de ancas largas e coxas volumosas. Estava num cliché de provocação, o clássico das fotografias de ocasião. Na sua farpela de Domingo, a cabeça um pouco baixa à laia de convite, a mão apoiada em cima da cama para desfazer dúvidas. Um chapéu de grosso tecido verde que deixava entrever os olhos numa expressão de lascívia inocente, abraçava uma rosa artificial contra o peito com as suas mãozitas gorditas. Toda aquela pose sugeria um sentimento muito especial, de menina-quase-mulher, de provocação erótica, de inocência perdida.

Na fotografia da direita, já casada, estava a mesma miúda toda embrulhada no seu vestido branco de noiva, sentada sobre a sua cama de colcha rendilhada. O quarto era espartano, com a mobília em madeira prensada e brilhante, na mesinha de cabeceira estava um Nossa Senhora fosforescente sobre uma toalhita de renda, o seminal terço espalhado pela parede por cima da cama, de madeira escura, grosso e agressivo. A rapariga estava sentada de esguelha por cima da cama, o braço esquerdo a apoiá-la, a mão com os dedos muito abertos sobre a colcha. Nos olhos a mesma expressão da fotografia ao lado, o sorriso oblíquo, as sobrancelhas cerradas.”

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