15 de outubro de 2009

Net Rage?

Um fenómeno já conhecido é sem dúvida o “Road Rage”, nome de jogo de Playstation e de patologia. Trata-se da bestialização de algumas pessoas quando estão atrás do volante. Cidadãos de outra forma calmos, ponderados, e avessos à violência transformam-se em coiotes raivosos dentro do carro. Vociferam, insultam, gritam até a apoplexia. Do outro lado um idoso, uma mulher, outro homem, seja quem for. Pode ter uma cadeira de bebé atrás, uma velha no banco do lado a rezar o terço, não interessa. Se há um corte inusitado numa rotunda, um pisca que não foi feito, uma ultrapassagem mal calculada... OLHA-ME PARA ESTE(A) FILHA DA PUTA. Apontando ao alvo e gritando mesmo que se esteja sozinho no carro. Há formas mais suaves (ou incipientes) que é o murmurar em voz baixa mas dura para o opositor, porque ele pode não ouvir mas lê-me os lábios. “Onde é que tiraste a carta, caralho? Essa merda faz-se? [gesto de passar a mão aberta rapidamente em frente à própria cara, como que a chamar o outro de cego] Acorda, caralho! Abre os olhos! Foda-se...”. O gesticular violento, a apontar de onde é que veio, para onde vai ou devia de ir, onde é que ia batendo.



Felizmente, os casos mais graves estão em minoria. Porque o pior que pode ser, é quando um “Road Rager” dos piores, tout-court, encontra um outro em estado pelo menos tão avançado., uma alma gémea da barbárie. Acontece, como é lógico, uma escalada de violência, trocam-se piretes como galhardetes, e qualquer gesto de hostilidade de um é um catalizador para o outro. Um catalizador eficaz. No limite (e não é assim tão raro), saiem ambos os contendores dos carros, partem para a violência física, e pode degenerar finalmente em alguém ou ambos voltarem ao carro, abrir a mala e tirar de lá a chave de porcas.



É o complexo R a funcionar na sua majestosa plenitude; o centro primitivo das emoções animais, esmagado debaixo de camadas e camadas de massa cinzenta e de milhares de anos de evolução. Alguém pode morrer porque não ligou o pisca ou queimou um semáforo. Alguém que estava cansado e só queria chegar a casa a tempo dos anos da filha, ou que estava à rasca.



Ora, um fenómeno semelhante se passa no ciberespaço. Não é novidade para ninguém, presumo, pois já todos reparámos na diferença das personalidades de alguém que conhecemos pessoalmente e depois na internet. Nos mails e anedotas porcas que se enviam aos chefes e professores; pensamos isto é só um forward, não fui eu que o disse ou que tirei a fotografia.
Perdemos o tino. Quer no que respeita à violência e agressão, quer no que respeita à ordinarice. Lá vem o complexo R a cintilar. O mais educado dos homens, maduro, respeitador e magnânimo, vê-se numa sala de chat com uma mulher que nunca viu em pessoa e diz-lhe coisas que nunca lhe diria na cara. Atira à confiança “Havias de ser um frango para eu te meter um pau no cu e fazer-te suar”, ou “Ó linda, sobe aqui à palmeira e anda-me lamber os cocos”. E depois desliga o computador e volta a fazer os orçamentos.



Vou contar esta história, a título de exemplo:
Estava a jogar um certo joguito de tiros. Somos todos soldados armados, damos tiros uns nos outros, uns melhor outros pior. Arena mais que prenhe de impropérios, também uns melhores que outros.
Ora, estava a jogar contra outro jogador melhor que eu. Como é óbvio, insultei-o, chamando-o de “hack”, ou seja, que é um batoteiro e arranjou programas que lhe dopam o jogador. Começam os insultos mútuos, perguntou-me se eu conhecia um clã qualquer, disse-lhe que não, então vai lá ver, diz ele. Então porquê?, digo eu, porque se lá fosses vias que eu sou o 3º melhor jogador português de CF (um jogo semelhante).
Começo a gozar com ele, obviamente, enquanto dávamos tiros uns nos outros:
Arranja uma vida, morcão. Deves estar gordo que nem uma besta.
Não, sou levezinho. Pergunta à tua mãe. LOL.
Vai buscar. Calei-me, não há resposta possível.
Por alguma razão, as mães, como no futebol, são as mais violentadas. "Pára de mandar granadas, burro de merda!", "A TUA MÃE!", logo.
Num ambiente real, uma coisa deste género dita na cara de alguém só tem uma resposta possível, como é lógico. E é bem possível que quem esteja do outro lado seja um miúdo de 13 anos que não chega com os pés ao chão, ou um empregado da Zara com um piercing, ou um detective quarentão que joga com uma garrafa de uísque ao lado. Ou o inimigo final da internet.



Não interessa, nunca se saberá, são todas essas pessoas e outras, não são nenhumas.
Que tem a Road Rage e a Net Rage, à falta de melhor termo, em comum, digo eu? Duas coisas.
Primeiro, é a anonimidade. O facto de não se estar em frente ao visado (ou de nem o conhecer), e a única comunicação é a escrita. Não se olha nos olhos, não se ouve a voz, não há inibições. Só o complexo R funciona. E, por alguma razão, quando funciona sozinho, parte para a violência (o que me leva a concluir que o civismo é uma invenção recente da espécie humana).
A segunda vem no seguimento da primeira. A escrita não chega para comunicar. Perdem-se coisas que só existem ao vivo, para, por exemplo, pôr água na fervura. Um sorriso pacificador e brincalhão, um olhar reprovador, uma pancadinha no ombro.
Por defeito, todos escolhem a interpretação mais odiosa possível de todas, ninguém quer “ficar por baixo”, e gera-se uma reacção em cadeia, um mecanismo de feedback positivo, um bilhete de ida para o fundo do poço, cheio de nojo e bílis.
Pena que isto aconteça, e gostava de alterar a situação. Começando por mim, talvez, tentar pôr o complexo R no mínimo, e, em vez de perpetuar um ciclo descendente, rir-me de todas estas situações. E despedir-me delas com um privado mas rotundo "que se foda".






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