24 de janeiro de 2011

Maurício, II

Era necessário pôr ordem na casa. Fazer o check de todos os sistemas, como na NASA antes de um vôo. Era preciso aquecer os reactores, verificar a ausência de fugas, colocar lentamente todo o sistema em operação. Ia demorar, Maurício sabia-o. A sua boca ainda estava forrada de um estranho miasma de sabor ocre, o nariz entupido, os olhos lentos e inchados por baixo das pálpebras. Mas primeiro, saber onde estava. Sabia que não estava em casa, pois em sua casa, no lugar das persianas que não funcionavam, estava um poster do Iggy Pop que assumia contornos fantasmagóricos quando iluminado pela luz da rua.
Enquanto pensava precisamente onde estava, apercebeu-se com espanto (mas sem medo) que não estava sozinho. Ouviu um suave estertor vindo de muito perto, de ao lado dele. Virou-se a custo para a fonte do barulho, e era uma mulher, mas não sabia quem era. Raciocinou o suficiente para tirar a ilação de que, se estava ali uma mulher, estava por sua livre vontade. Com muita calma então, encostou-se mais um pouco a ela para, pelo menos, a identificar. Colocou-se em concha por trás, e ainda de olhos fechados (não serviriam de nada de qualquer maneira) passou-se calmamente a mão desde o ombro até à anca. Descobriu com agrado que era uma fêmea exemplar, tonificada e de pele suave, com uma camadinha apenas de gordura, mas firme, como um tapete de rato. Cheirava bem também, a animal quente, a mamífero pequeno depois de hibernar. O resto do quarto, no entanto (se é que se tratava de um quarto) exibia toda uma panóplia de cheiros agridoces e aromas, a roupa molhada, a meias sujas, a mosto pisado, a destilaria abandonada. Ora, uma boa maneira de despoletar a memória, de saber onde estava, era saber com quem estava. O latejar da cabeça de Maurício continuava impiedoso, mas pelo menos agora era constante e monótono. À medida que Maurício continuava a apalpar terreno, passando as mãos pela pele da sua companheira, fazendo um agradável som de lixa de água a passar numa madeira nobre, a mulher voltou a mostrar sinais de vida. Murmurou um “hum” lento e rouco, e um barulho com a boca como se estivesse a comer. O barulho que fez sugeriu que, como Maurício, teria também a boca revestida de um pernicioso miasma, de saliva viscosa. Mexeu as mãos, e inconscientemente levou a mão direita ao meio das pernas de Maurício. Ao tocar no seu membro entumescido, afastou a mão quase de repente, como um pequeno susto, mas voltou a colocá-la no mesmo sítio com cuidado e reverência. “Publicidade enganosa, amiga”, apeteceu a Maurício dizer. Era um pretexto como qualquer outro, para Maurício se levantar, dirigir à casa de banho e, com sorte, tentar tirar algum sentido de tudo aquilo. Vamos a isso então, pensou Maurício, enquanto fazia um colossal esforço para se sentar na borda da cama. Sorveu as últimas gotas da garrafa de água e esfregou os olhos. Apoiou os cotovelos nos joelhos e a cabeça nas mãos, e voltou a incógnita. Mas onde diabo é que estou? Como é que vim aqui parar? Quem é esta aqui ao lado? Maurício tinha quase uma alegria infantil, de jogar às escondidas ou ao quarto escuro, ou de uma criança a abrir uma prenda de Natal. Mistérios destes, tão básicos, são já muito raros numa pessoa de 27 anos.
Uma pequena luz azul que piscou, fugaz, que Maurício vislumbrou pelo canto do olho, indicou-lhe a vaga localização do seu telemóvel. Caminhou cautelosamente pela penumbra do quarto para o resgatar. Estava no chão. Eram nove da noite.

Sem comentários:

Acreditam:

Seguidores